sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A Mulher Essencial

Dizem que Deus foi o arquiteto do universo. Ao que parece, porém, Ele foi arquiteto e engenheiro. Engenheiro quando criou o homem e arquiteto ao gerar a mulher. Ao homem coube a maior força física, a estrutura necessária para o embate com as adversidades da vida, quando a força bruta ainda se fazia necessária à sobrevivência. Ao lado do homem caçador, guerreiro e competitivo ficava a mulher, em geral fisicamente mais frágil, mas trazendo em si a força da feminilidade: a sensibilidade, a ternura, a intuição, a cooperação, a capacidade de gerar novas vidas. Forças complementares, masculino e feminino possuem dentro de si um germe de seu gênero oposto, embora as sociedades patriarcais tenham cuidado de estabelecer a noção de “homem” e “mulher” como entes separados, opostos, cada qual ocupando espaços distintos na sociedade.
Sob a força física, estruturou-se grande parte das sociedades humanas. Patriarcais, determinaram espaços e horários essencialmente masculinos às suas organizações. O “lugar da mulher” foi delimitado entre as paredes de sua casa. A carga horária do trabalho nas empresas não se fez para quem cuida de filhos e da manutenção de um lar, tarefas atribuídas à mulher, e a esta não se permitia o poder decisório nas questões sociais.
Em busca de libertar-se do jugo masculino, impelida pela vida que procura seu equilíbrio, a mulher lutou pelo seu natural espaço na sociedade. Mas diante do machismo, provar seu valor passava pela prova de competência no que o universo masculino valorizava. Devia a mulher ser também competitiva, forte, “guerreira” no trabalho.
Resultou disso a absorção de parte do arquétipo masculino pela mulher. Assumiu ela características masculinas em detrimento das femininas, fortaleceu o animus em detrimento da anima e, paradoxalmente, perdeu parte da sua força essencial ao tentar conquistar um melhor lugar em um universo masculino e incompleto, necessitado exatamente do aspecto vital feminino.
Segundo a fonoaudióloga Maruska Freire Rameck, em matéria da revista Época, mulheres executivas tendem a imitar o jeito de falar masculino a fim de obter respeito e credibilidade. Em sua tese de doutorado “Dinâmica da voz e do gênero: uma questão de poder”, em que faz uma comparação entre a voz de donas-de-casa, executivas e profissionais liberais, ela aponta a tendência das executivas a reproduzirem o tom de voz identificado pela sociedade como um padrão de poder, o que normalmente ocorre de forma inconsciente, em função da pressão a que as mulheres são submetidas quando tentam ocupar lugares tradicionalmente masculinos. Evidentemente, falar em tons graves e fortes não implica em capacidade de liderança e pode até passar a idéia de arrogância, mas trata-se de um modelo já existente e aceito no mercado de trabalho quando este passou a receber profissionais mulheres.
Também é fácil perceber a incorporação de modelos masculinos ao guarda-roupa feminino. “Existiam até roupas com ombreiras. Era como se quiséssemos estar ombro a ombro com os homens”, observou a jornalista Ana Paula Padrão, sobre a moda nos anos 80, na matéria citada. Os chamados terninhos são um exemplo típico de vestuário feminino originado do figurino masculino.
Nas atitudes, no vocabulário, em quase todos os aspectos da vida da mulher a entrada de elementos masculinos é perceptível, o que pode ser visto como uma evolução no comportamento humano enquanto tal alteração significa a quebra das barreiras do preconceito e a negação à subserviência historicamente imposta às mulheres, mas também como um desequilíbrio na estrutura social quando a mulher perde sua feminilidade primordial ao assumir o que de pior se encontra no arquétipo masculino.
Independentemente do que pode afirmar a astrologia, chegamos a 2004 sob a regência de Marte: guerras e atentados, competitividade desagregadora nas metodologias de administração das empresas e o capitalismo selvagem alastrando-se pelo globo são alguns dos aspectos masculinos mais patentes em nosso quadro histórico. “A universidade, a cultura moderna e o processo técnico-científico são produções do patriarcado. Por isso ele é violento, dilacerador e produtor de dualidades e rupturas”, observa o teólogo e filósofo Leonardo Boff. Lembrando que a mulher “tem uma experiência holística, inclusiva e globalizadora”, ressalta que, “por serem as principais portadoras da anima (princípio feminino), as mulheres têm uma visão mais integradora, que não dissocia, está mais próxima da Fonte e por isso é muito mais espiritual.” É a partir desse aspecto de integração, de colaboração, que pode ser originada uma revolução na sociedade, carente do equilíbrio gerador da paz.
É bom que se ressalte aqui algumas diferenças entre a visão do papel da mulher entre os diferentes povos do globo, as quais poderíamos representar pelas figuras de Maria, Eva e Shakti. Enquanto no ocidente o princípio feminino dividiu-se entre a fêmea orgulhosa, corruptora e geradora do “pecado original” – Eva –, e a virgem imaculada, mãe misericordiosa – Maria –, encontramos entre os hindus a deusa Shakti, fusão das imagens de Eva e Maria e representação da maternidade e da energia primordial geradora da vida. A “divisão simbólica da feminilidade em duas imagens antagônicas provocou uma profunda fratura e graves lesões no inconsciente coletivo da cristandade”, lembra Cécile Sagne, em “O Erotismo Sagrado”. Dessa forma, a mulher só deixa de representar Eva, a pecadora, no momento da maternidade, quando ocorre sua redenção ao assumir o arquétipo de Maria. Lembrando a visão hinduísta de que “toda mulher é, para sua família, seu marido, seus filhos, uma manifestação de Shakti, uma encarnação da deusa que põe em marcha o universo das formas, engendra a vida e em seguida se sacrifica, se devota, dá-se continuamente aos seus como alimento, assumindo seu destino de esposa e de mãe”, Sagne assinala que, sob essa ótica, “em que a condição feminina é exaltada, valorizada ao máximo, a mulher não tem absolutamente a impressão de exercer um papel subalterno, assumindo tarefas que o Ocidente despreza mas que a Índia cerca de um respeito e veneração quase místicos. Neste aspecto, o estatuto da mulher no lar, como mãe de família, é investido de uma divindade, de uma grandeza que mal podemos imaginar.” Entretanto, não se deve “romantizar” em demasia a forma como algumas culturas orientais enxergam a mulher. Se é verdade que a mulher é merecedora de maior respeito no papel de mãe e zeladora do lar entre certos povos, também é verdade que o sentimento de posse sobre a esposa também está presente, notadamente em sociedades polígamas, o que é facilmente perceptível pelas penas severas impostas às mulheres que praticam o adultério ou simplesmente desobedecem seus maridos.
No Ocidente, por outro lado, não se pode alardear a liberdade da mulher sem levar em consideração que todos nós, homens e mulheres, somos prisioneiros de um sistema sufocante. “Após um duro dia de trabalho, muitas vezes repetitivo e extenuante, a fadiga suplementar dos transportes e o enervamento das horas de pique, qual a energia, qual a autêntica disponibilidade que o marido e a mulher ainda têm, tanto um para o outro quanto para com os filhos? Que lhes resta para oferecer de si mesmos, além de esgotamento e irritabilidade?”, questiona Sagne, na obra citada.
A asfixia dos valores femininos nas sociedades ocidentais é perceptível pelo que caracteriza os objetivos impostos a seus membros. Ainda citando Cécile Sagne: “Os ideais e modelos que nos apresentam orientam-se cada vez mais no sentido da velocidade, da violência, da competição, da conquista, da agitação frenética e de uma tensão explosiva, ao mesmo tempo física, emocional e mental. Os mitos modernos exaltam os superativos, os superexcitados e os supermachos – detetive, bandido, assaltante, mercenário, grande fera ou Super-Homem das finanças e da política.” Se antes a mulher era pressionada a assumir o papel de mãe e dona-de-casa a fim de ser reconhecida como um membro útil e bem-sucedido da comunidade, hoje a medida de seu sucesso é dada pela sua capacidade profissional.
Insatisfeitas com o rumo dado a suas vidas, começam a surgir mulheres empenhadas em defender o sistema social pré-feminista como ideal, normalmente não considerando a importância das revoluções de costumes no processo de construção de uma sociedade mais equilibrada e harmônica. Recentemente, um texto antifeminista, supostamente elaborado por uma mulher, espalhou-se via correio eletrônico. Lembrando as obrigações antes masculinas que a chamada mulher moderna passou a ter, descreve uma época referenciada como sendo do “tempo das nossas avós” de forma bastante pueril, elaborando uma cena semelhante às apresentadas pela Rede Globo de Televisão em mini-séries e novelas, quando a vida de esposas de grandes fazendeiros é representada. Ignorando completamente o fato de que grande parte das mulheres não pertencia a famílias ricas, cabendo a elas o trabalho cotidiano do lar, afirma que as mulheres “passavam o dia a bordar, a trocar receitas com as amigas, ensinando-se mutuamente segredos de molhos e temperos, de remédios caseiros, lendo bons livros das bibliotecas dos maridos, decorando a casa, podando árvores, plantando flores, colhendo legumes das hortas, educando crianças, freqüentando saraus. A vida era um grande curso de artesanato, medicina alternativa e culinária.” Sem levar em consideração a atual condição econômica que torna a participação feminina no mercado de trabalho imprescindível à maioria das famílias, a autora, após afirmar estar abdicando do posto de mulher moderna pelo de “Amélia”, convida a leitora a fazer o mesmo. Embora o texto tenha sido escrito em tom humorístico, teve grande divulgação pela Internet, podendo ser encontrado em diversos sites, o que valida sua menção aqui, uma vez que representa a face mais ingênua de todo processo de busca de libertação: a crença de que o retorno ao antigo é a saída para a opressão do novo. Ou, em termos mais populares: a idéia de que “antigamente é que era bom”, e que eram “bons tempos aqueles”, etc.. Trata-se da comum dificuldade humana em pensar em termos evolutivos. A partir da insatisfação com o presente, analisa-se o passado em busca “do que foi feito de errado” e, ao se identificar bons momentos em tempos pretéritos, passa-se a viver de forma saudosista, reclamando uma suposta vida melhor com bases de retorno impossível. Esquece-se de conquistas valiosas e antigos problemas para construir uma falsa imagem de um mundo que teria sido perfeito, em um tipo de lamúria atávica pela expulsão do Jardim do Éden.
Mencionar o fato de que a mulher perde parte de sua força ao assumir comportamentos masculinos, não significa, de modo algum, a defesa do retorno a uma sociedade ainda mais machista que a atual, nem tampouco da criação de uma nova ordem social baseada tão-somente no arquétipo feminino, mas da necessidade da estruturação de um sistema mais equilibrado, onde masculino e feminino sejam aspectos igualmente importantes e complementares e onde cada um tenha a oportunidade de crescer a partir de sua própria individualidade. É imprescindível que a sociedade valorize a diferenciação entre os sexos e compreenda a importância da presença completa de ambos na vida de forma geral. Não se trata apenas de uma diferença biológica, como bem lembra Leonardo Boff:
“O feminino na mulher e no homem é o esprit de finesse (...). É a capacidade de inteireza, de percepção de totalidades orgânicas, de unicidade do processo vital em suas mais diversas manifestações; é subjetividade, ternura, cuidado, acolhida, nutrição, conservação, cooperação, sensibilidade, intuição, experiência do caráter sagrado e misterioso da vida e do mundo.
O masculino no homem e na mulher é o esprit de géometrie, de objetividade, de análise, de trabalho, de competição, de auto-afirmação, de racionalidade, de capacidade de abrir caminhos, de superar obstáculos e de concretizar com determinação um projeto.
Não devemos monopolizar o masculino somente no homem e o feminino somente na mulher. Tal é o equívoco da cultura dualista ocidental e de outras culturas patriarcalistas. Olvidou-se que homem e mulher têm dentro de si a totalidade masculina e feminina. Cada qual deve realizar a síntese a partir de sua situação concreta ou de homem ou de mulher.
Ambos os princípios, masculino e feminino, devem conviver, interagir, complementar-se e construir cada ser humano, com ternura e vigor, com subjetividade fecunda e com objetividade segura.”
Essa noção da necessária liberação do feminino para que a complementaridade entre os gêneros ocorra gerando a libertação da alma humana, seja do homem ou da mulher, também pode ser encontrada na mitologia grega, na figura do deus Dioniso. “Essa liberação do feminino, contudo, não deve ser confundida com o feminismo contemporâneo como tal, apesar de as metas sociais do feminismo poderem ser meritórias. A ênfase primordial da experiência dionisíaca não é alcançar a mudança social, e sim liberar tudo que é livre e primitivo na alma humana”, observa John Sanford, em “Destino, Amor e Êxtase”. “A liberação do feminino na alma, contudo, não é alcançada através da rejeição do logos, os poderes do masculino. O que vemos na liberação dionisíaca não é a vitória de um elemento sobre o outro, e sim a libertação de tudo que pertence à alma, para que os diversos elementos desta possam se unir”, enfatiza Sanford.
A maior presença do arquétipo feminino nas relações sociais abre uma nova perspectiva para o futuro do planeta. Estabelecer o que Boff chama de “uma nova aliança homem-mulher” é a grande meta a ser alcançada no século XXI, a maneira de substituirmos a discórdia pela união na diversidade, a competitividade destrutiva pela colaboração e a guerra pela paz, em um projeto de criação de uma sociedade mais humana para todos nós, homens e mulheres.

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