domingo, 28 de junho de 2009

Salto Alto (Cronica)


SALTO ALTO

Bem que ela leu em algum lugar que o ponto G da mulher é o cérebro. Foi só ouvir aquela frase para o sexo automático de uma noite de terça ser promovido a pura sacanagem:

- Não tira o sapato...

Como ela não tinha pensado nisso? Um fetiche assim, sem mais nem menos! A lingerie mais cara do mundo não conseguiria ser tão provocante no momento. Então o escarpim que ela usou um milhão de vezes, já levemente desgastado na ponta e com a borrachinha do salto precisando de conserto, ainda mantinha seu sex appeal. Quinze centímetros de prazer. Bico fino e sensual. Couro preto e devasso -- ih, será que era couro mesmo? Impossível não lembrar que o velho escarpim de guerra fora seu parceiro fiel em tantas reuniões chatas, nas rapidinhas até o supermercado, no enterro da tia Inês semana passada.
- Sério?
- Sério.
Hummm. O poder de um salto alto no imaginário masculino! Quanto mais o escarpim cobria seus pés, mais ela se sentia nua. Os dois ainda nem haviam iniciado os trabalhos e o seu cérebro já se contorcia todinho. Impressionante como uma terça-feira que começou com "tira os cotovelos da mesa" e "eu falei para tirar os pés daí" poderia terminar com um sexo tão gostoso. Cadê as crianças? E a louça para botar na máquina? Sei lá, essas preocupações só fazem sentido em um ambiente familiar, não no motel de beira de estrada em que o apartamento acabava de se transformar.
- Não tiro o sapato se você nunca mais tirar as mãos de mim...
Hummm. O poder de uma boa pegada. Olha só como a rotina e as contas vencidas atrapalham um relacionamento! Mãos para cá, bocas para lá. E ela pensando que nenhuma caixa de leite faltando na despensa tem o direito de afastar duas pessoas que se amam.Hummm. Onde eles estavam mesmo? Transando como nos velhos tempos. E não é que ele continuava tarado? Ou sempre foi e o vazamento da pia, inacreditavelmente, havia desfocado sua atenção. Naquela noite, tudo era cama redonda: o braço retangular do sofá, o banquinho quadrado da cozinha, o teto da sala que refletia sombras como se fosse um espelho. Quando eles finalmente chegaram ao quarto, o safado do escarpim pisoteou as fronhas limpas, chutou os travesseiros, rasgou o lençol e -- sabe-se lá como -- acertou a dicróica da mesinha de cabeceira.
Eles nem perceberam que o filho levantou, foi ao banheiro fazer xixi e voltou sonâmbulo para a cama. Nem perceberam que os vizinhos de baixo ouviram tudo. Dormiram já com a luz do sol espiando pelo buraco da fechadura. Amontoados num só lado da cama, como se a king size fosse um colchãozinho de solteiro.Que delícia acordar no outro dia e cada um juntar os braços e pernas que eram seus. O melhor de tudo foi na hora do banho, quando ela lembrou que as liquidações de sapatos estavam começando.

Magali Moraes

ObsUm Uma cronica da visão feminina sobre uma noite de amor!


fonte:revista claudia

0 comentários: