quinta-feira, 10 de julho de 2008

A mulher do espelho


O tempo é o tempo, inquieto e passageiro. Cada minuto que se foi, já pertence ao passado. Você vê os outros, percebe o tempo que passa para os outros. A si mesma não vê, ou porque a vida é corrida e os afazeres são muitos ou porque isto não lhe interessa. Você não é vaidosa nem fútil, tem coisa mais importante a fazer. Seria fácil se não existissem espelhos, mas eles existem e dentro deles mora a mulher do espelho. De plantão permanente, à espreita em cada vidraça iluminada, em cada elevador, em cada sala, em cada toucador, em cada armário de banheiro. Cruel, acusadora, algoz das suas fragilidades. O espelho é o mensageiro do tempo.

O primeiro fio de cabelo branco, a primeira ruga no canto do olho, como a maltrataram! Com que fúria inconformada você arrancou aquele inconveniente e precoce sinal dos tempos. E se fez refém de tinturas, cremes e silicones na guerra silenciosa e inútil contra o inexorável.
Aquela “cinturinha de pilão”, 62 centímetros, você a teve, sim, basta olhar as fotos do seu casamento. Não foi “linda de morrer”, porém foi sempre alegre, brejeira, charmosa e cortejada... Foi, sim! Os amigos declaram espontaneamente: você era bem bonitinha. Os correios-elegantes, os acrósticos e sonetos atados com fitilho rosa, guardados na caixinha verde-musgo, no fundo da terceira gaveta, confirmam este momento especial: o despertar da crisálida... “naquela idade inquieta e duvidosa... entreaberto botão, entrefechada rosa”...
Você é do tempo das serenatas. Muitas. Inesperadas. Românticas. Um repertório delicado de valsinhas tristes com solo de violão, gaita, flauta, acordeon, violino... Os rapazes, silenciosos habitantes da noite, acordavam as namoradas com a oferenda lírica do seu canto apaixonado. As canções falavam de paixão, de beijos, de desejos, tudo que naquele tempo era terminantemente proibido. Quando os seresteiros iam embora, as musas ficavam arrasadas na solidão do seu quarto escuro, com o rosto em brasa, a boca seca e o coração disparado.
Você foi noiva, esposa e mãe. Cada coisa no seu tempo, com muita alegria. Pensa que foi boa esposa. Como mãe, deixou a desejar. Impaciente, exigente, gritadeira e batedeira. A casa sempre impecável? Quase sempre? Dona de casa sofrível? Isto não tem importância, já passou. O importante é que os filhos tenham sido a prioridade da família e a geladeira tenha estado sempre abastecida.
Você ajudou o marido. Trabalhou em casa ou fora de casa, sempre aquela correria. Não teve tempo nem para sentir dor de cabeça. Os pais, seus e do marido, envelhecendo, adoecendo, empobrecendo, precisando de assistência, e você, um rochedo, comprimida entre as urgências de duas gerações: seus pais e seus filhos.

Nem a Mulher-maravilha seria capaz de se desdobrar tanto! Por isso é que todo ano, no dia 8 de março, dia internacional da mulher, você acha graça, apesar de haver alguém que se sinta lisonjeada. É uma piada de salão. Um dia para as mulheres e 364 dias para os homens. Por mais espertas que sejam, por mais tenacidade que tenham, as mulheres continuam domesticadas, enleadas, capturadas, escravizadas. Os opressores não são mais os homens, os maridos. Os algozes de agora são a moda e o consumo, verdadeiros ditadores nesta sociedade cada vez mais desigual e globalizada.
O marido deu uma escorregada. Pensou que tivesse, de novo, dezoito anos, e se atirou numa aventura juvenil. Aquilo, sim, doeu demais! Você se sentiu traída, passada para trás. Pensou em arranjar um amante para se vingar de tamanha humilhação. Pensou em largar tudo, quebrar tudo, arranhar a cara do marido, pedir o divórcio. Muitas pensaram e fizeram tudo isto. Umas se arrependeram, outras, não. Algumas fizeram de conta que não sabiam. Preferiram o silêncio e se fecharam em copas. E como todas pensavam que o marido fosse propriedade sua, seus corações se transformaram em porcelana trincada. Foi quando Cinderela virou Gata Borralheira.

O psicanalista/psiquiatra prescreveu medicação amarga. Nada de pílulas. Nada de química. Marque um encontro com a mulher do espelho. Respire fundo e vá. Enfrente-a. Serão duríssimos os embates.

Diga-lhe que cada marca do tempo significa um obstáculo transposto. Algum sofrimento, com certeza, porque ninguém viverá imune à dor nem viverá impunemente. Ganhar é ótimo. Perder é péssimo. A vida é um perde-ganha.

Diga-lhe que você é frágil quase sempre, com exceção dos momentos delicadíssimos que revelam a pessoa equilibrada, sensata, madura e forte que você é. Pensava assim? Não pensa mais. Mudou de idéia? Parabéns, gente inteligente é versátil, reciclável! Ia. Não vai mais? E daí? Talvez amanhã ou depois de amanhã você vá, numa boa, feliz da vida, cantarolando, assobiando.

Diga-lhe, com toda serenidade, que você errou alguma vez. Que a decisão tomada não foi a melhor, mas tudo, sempre, foi de seu livre arbítrio. Esvazie a culpa que recaía sobre sua mãe, seus filhos, seu marido... As pessoas são falíveis e o direito de falhar é legítimo. Quem pode ser boa toda vida? Humilde, haja o que houver? Você não é a madre Teresa de Calcutá.

Os homens são mais realistas, mais práticos. Eles têm um encontro marcado todos os dias com um grande amigo, o moço do espelho, quando se barbeiam. Aquele diálogo saudável, que vai acontecer até o último dia de sua vida, é repleto de confidências, de carícias, de cumplicidade. Os homens envelhecem serenamente, lindamente, porque jogam o jogo da verdade.

Envelhecer é uma fatalidade, mas, se você quiser ser forte, realista e moderna, pode considerar um privilégio e uma honra. Diga isto à mulher do espelho.

Martha de Freitas Azevedo Pannunzio - do IAT marthapannunzio@hotmail.com

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